''Plus d'hiver'' (Yann Tiersen)
Às vezes, em sonhos, percorro sério e alegre ruas de silêncio onde abundam flores convexas a crescerem no asfalto, tristes como crianças tristes, flores escuras como uma rosa morta na estação do orgulho. Às vezes, em ruas que não existem eu observo a alegria, observo a tristeza, reparando em cada âmbito primeiro, em cada limite, em cada proporção do espaço indefinível, pairando alegre sobre a profundidade da vida. Simples, sério, sincero. Guardando sempre um sorriso.
Cada vez que observo a alegria e o seu estado circunstancial, e o seu estado perene, e, portanto, a verdadeira alegria, vejo com mais claridade que tudo na vida é feito dela, que o inverno, impronunciável sobre o contorno dos lábios, guarda algo de máscara, de limitada inconsciência, e que os dedos, os meus dedos de paz, de amor, queimados desde o mandato da sombra, guardam em si a linguagem cifrada das aves de Março.
Por isso pronuncio a palavra, o nome. E tudo cai. Porque tudo é um profundo porvir. Por isso calo. Essa é a minha palavra: o silêncio. No silêncio todas as palavras existem escrevi no momento em que me apaixonei por ela. Logo, nunca mais esqueci a verdade revelada, o idioma infinito. Nunca mais a vida seria vista com outros olhos. A visão do abismo era ela, a que eu conhecera num sonho, em criança, segurando uma rosa que não conhecia orgulho.
Rosa sem orgulho que leva à inteira Liberdade. À fonte que aparece em nós dando forma à palavra e ao silêncio, sempre a manar sob a nossa vontade de luz.
ResponElimina"Porque tudo é um profundo porvir", como bem dizes, caro amigo.
Ramiro:
ResponEliminaLogo de escrever o texto anterior, que intitulei "Plus d'hivern" (mas que depois de ler o teu comentário provavelmente intitularia "A rosa sem orgulho"), reparei nessas duas rosas de que falo no texto, a "rosa morta na estação do orgulho" e a "rosa que não conhecia orgulho", à que tu te referes como "rosa sem orgulho", expressão de que gostei muito mesmo.
A primeira das rosas que cito lembra-me a rosa do prinzipezinho. A vaidade da rosa do pequeno príncipe, neste caso o orgulho, fez com que o prinzipezinho fosse embora do planeta e deixasse a rosa, mesmo amando-a. Mas a rosa sem orgulho é o outro lado da realidade, um lado tão aberto como Abril desabrochando a beleza imanente da rosa, uma beleza "invisível aos olhos", uma beleza não feita de palavras nem de promessas e palavras falsas, ocas, nascidas do ruído, uma beleza que fala em silêncio, como a linguagem da vida, porque "tudo é um profundo porvir", como o verdadeiro conhecimento, como o verdadeiro amor, só possível nesse silêncio que fala, como indiquei, sem palavras. E isto subscreve-o alguém que gosta mesmo das palavras, que gosta imenso das línguas, mas elas, as línguas, são apenas reflexos da luz imensa que é a Linguagem da Vida. Podemos é servir-nos dos idiomas para sincerar o espaço que brilha em nós e contrastá-lo no mundo, dar-lhe expressão no mundo, mas, se atraiçoarmos a língua inicial, primeira, a Linguagem da Vida, usândomos esses reflexos sem consciência do seu valor e de que eles são apenas reflexos da Linguagem eterna da verdade, apenas estaremos a perder-nos sem reparo no labirinto de imagens falsas que nos afasta de nós, do nós que eu sou, do eu que nós somos.
Obrigado pola tua atenção, alegre e comovido pola tua amizade.
Abraços que são de dia luminoso de Abril, na serena alegria da liberdade.
Obrigado pelas tuas palavras, caro.
ResponEliminaCom certeza, dás no alvo ao considerar a Linguagem da Vida (noutras tradições e/ou poéticas recebe outros nomes, tão válidos no fundo como este, já que fala(m) do mesmo) como o primordial que actua trás a palavra, trás todo internamento na procura do que nos leva ao mais interior de nós, que é, também, o mais interior do universo. Por isso, como bem dizes, quando as palavras, ou qualquer arte, ou mesmo qualquer vida humana estão volcadas nesse aprofundamento, por chamá-lo assim, trazem consigo uma espécie de rasto solar que ilumina a existência inteira, e nos faz don@s de uma mais alta percepção: não temos mais, mas SOMOS irremediavelmente mais. Como uma rosa sem orgulho, dando luz aos nossos olhos.
Saúde e apertas desde todos os caminhos onde nos encontra(re)mos.