diumenge, 10 de maig del 2015

QUANDO JÁ PELOS PRADOS O ORVALHO, de Ruy Belo


Quando já pelos prados o orvalho
aspergira as inúmeras pétalas das primeiras flores
e corriam as lágrimas ao longo da já longa idade
de homens onde o rio da alegria já secara há muito
talvez suponho eu no tempo dos primeiros salmos admoestadores
em que os olhos se abriam para o medo das mensagens mais funestas

quando o mel se multiplicara já pelos cortiços sob os novos cedros
e tendas de listrados panos já se erguiam nas dunas junto ao mar
e o vento consigo trazia a flor do cacto que mal nasce logo morre
na carne tumefacta e inaugural
e transportava aromas densos e procriadores ainda então
e os nossos bens na terra eram os olhos que regavam novos campos

quando as tardes eram notoriamente altas e as sulcavam
vozes de muitas raparigas que voltavam das fontes ou de minas com avencas
de bilhas muitos esguias à cabeça bilhas que prolongavam o seu porte
o seu andar seguro e digno bilhas de mãos fincadas nas ilhargas
bilhas extremamente sabedoras desgastadas afinal pelo convívio
com os limos com os seixos muito brancos e moldados pela água
na época do ano em que a chuva restituíra à terra em forma líquida
parte da água que há muito lhe devia e agora humedecia coisas
insignificantes como os humílimos botões dos musgos a capa muito verde
de certos muros erguidos para demarcar os bens com que a prosperidade
nos presenteara e o tempo a pouco e pouco tais demarcações dissimulara
na palidez das tarde invernais de um determinado roxo levemente tintas
nessas obnubiladas sentinelas dos antigos casarões de esconsas ruas

quando entre a noite e nós se estabelecia um parentesco cúmplice
visível em mansões quadradas devassadas por inumeráveis ventanais

quando a magnólia branca e concentrada concentradamente branca
exibia esse branco como uma bandeira da paz íntima da terra
e o sol conspirava na suspeita mansidão de alguns quintais
e os piões quadrados já rodopiavam sobre as mesas

quando nas grandes salas de família as mãos multiplicadoras das mulheres
às vezes desdobravam as alvas de linho ocultas quase sempre em arcas
muito velhas arrancadas às vezes às arcas pelas sucessivas gerações e eram
temporais e misteriosas cheias de leves cheiros e capazes de repente
de congregar os mortos mais recentes os mortos mais antigos numa
assembleia nocturna dispersos de repente pela luz de mais uma manhã
especialmente no dia da senhora das candeias quando o sol além de sol
era prenúncio de que se sucederiam sete meses prósperos e secos

quando as mulheres movendo-se moviam os cabelos populosos
e conheciam incontáveis nomes e eram conhecidas por nomes incontáveis
e nunca esses nomes as continham quando as mulheres sabiam
coisas que muitos homens pensaram no passado mas depois esqueceram
e elas repetindo-as iam de uma sala para outra ao sabor das situações

quando as pessoas já eram mortais mas não o eram assim excessivamente
e se reconheciam a si próprias nuns olhos alheios
e a sua pele humedecia e se tornava cada vez mais fina
sem deixar de ser pele sem passar a ser cútis a não ser nos anúncios
ou nos salões de cabeleireiras onde sempre só se fala dos outros
da vida privada dos outros dos pequenos escândalos diários
e fora disso havia a barba que crescia e que cobria a cara
com que uns homens outros homens encaravam
e a vida era vivida quase sempre como coisa súbita

Ruy Belo,
in A Margem da Alegria (1974).

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